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Esta retrospectiva de Pedro de Sousa vem certamente confirmar aquilo que os seus admiradores, tendo seguido o seu percurso, não podiam deixar de reconhecer: que a mestria alcançada nos seus trabalhos de gravura e desenho não encontrava paralelo na sua pintura. As hesitações e dificuldades experimentadas perante uma tela nunca o Pedro as escondeu. Ele sabia como era difícil encontrar o caminho certo neste campo onde as suas contradições pessoais deparavam com escolhas e riscos acrescidos. Que ele era um homem de rigor, todos os seus amigos o reconhecem; rigor que era fruto de uma grande exigência crítica e total exigência crítica e total honestidade profissional.

Na sua actividade plástica, tal rigor assentava fundamentalmente no desenho, no respeito pelos materiais e por algumas regras antigas de séculos. Por isso, quando se colocava face a uma tela, era ainda ao desenho que ele rendia as suas homenagens. Aí começavam as grandes dificuldades, porque a cor e a matéria da pintura são ciumentas e caprichosas, dificilmente se submetem à tirania do desenho; quando o fazem acabam por morrer.
O Pedro tinha consciência do problema, procurava resolvê-lo, ele que, no fundo de si mesmo, sonhava com a libertação e a embriaguez que só a cor pode desencadear.

Algumas vezes ponderámos este dilema em frente das telas que eram postas de lado, inacabadas, para grande frustração do pintor. “Mas há-de haver um caminho” – dizia ele, sem nunca deixar de acreditar que acabaria por encontrar essa porta, para onde rigor e embriaguez se dariam as mãos.

Foi em 1972, em Paris, que conheci Pedro de Sousa. Tinha ele iniciado então um curso de pintura na Escola Superior de Belas Artes de Paris e ao mesmo tempo que pintava fazia as suas provas de gravura numa pequena prensa que adquirira recentemente. Mostrou-me imensos desenhos, as suas primeiras telas, em que era evidente uma redução Pop, mas sobretudo o fascínio pela arte renascentista, pelas formas gordas de Piero della Francesca, que ele amava especialmente. Estudos de panejamentos, certas perspectivas urbanas lembrando pequenas praças de cidades italianas, iriam manter-se até às suas últimas pinturas.
Mas também já aí espreitavam insólitos fantasmas, anunciando a monstruosidade implantada na vida quotidiana da cidade moderna. Dessa invasão incontrolada do Absurdo na pacatez do dia a dia nos dão notícia os últimos trabalhos.

Pedro de Sousa sabia que não era fácil resolver as contradições formais do seu trabalho no plano da tela, com uma técnica que exige um trabalho continuado, até se conseguir obter bons resultados. Como conciliar as suas fantasias, necessidades de sonho, em formas que ele exigia que fossem de rigor extremo? Sabia igualmente que trilhava um caminho solitário no meio artístico da sua geração e que não podia contar com o reconhecimento dos seus méritos neste pequeno mundo lisboeta onde talentos mais questionáveis singravam de velas desfraldadas.

As poucas exposições individuais que teve (duas) não foram suficientes para chamar a atenção da crítica à importância do seu trabalho. Os seus amigos, de certo modo fascinados pela sua personalidade, não duvidavam do valor deste trabalho, transparente sobretudo nos desenhos e nas suas pequenas águas fortes, mas sentiam que não alcançara ainda na pintura expoentes paralelos.

“Vim para Portugal porque me apetecia pintar as couves portuguesas e eu não sei trabalhar sem modelo” – dizia a gracejar. Intensamente fotografou e pintou as contorções barrocas destas couves, porque era capaz de amar igualmente as formas do Barroco, tanto como as mais depuradamente clássicas: Em 1980 realizou no Clube de Campismo de Almada uma mostra de fotografia, instalação acompanhada de textos, que me pareceu proposta notável. Ele costumava calcorrear veredas e atalhos na periferia da cidade, fotografando as hortinhas onde os seus habitantes de certa maneira mitigavam a nostalgia de uma ruralidade truncada, procurando ao mesmo tempo atenuar os efeitos de pobreza na sua economia doméstica. Nesta exposição Pedro chamava a atenção para a importância deste facto antropológico e para os seus aspectos estéticos. Eram fotos de uma beleza espectacular, mostrando como a naturalidade e a imaginação popular podem obter efeitos estéticos imprevisíveis, ainda quando as finalidades não são propriamente artísticas. A dimensão vincadamente estética, essa foi Pedro de Sousa que encontrou, ao fotografar e mostrar publicamente essas pequenas hortas, como manifestações culturais das populações periféricas da cidade. Noutras latitudes, a Land Art dava-lhe certamente razão.

Nas últimas telas, a presença dessas couves, tão gostosamente fotografadas, iria agigantar-se insolitamente como espectáculo de rara beleza. Como emblemas, elas demonstram que a relação mais íntima do Pedro com o mundo natural (plantas, calhaus, bichos, pessoas, madeira apodrecida, raízes, todas as coisas, enfim) era sempre uma adesão apaixonada, física, total. Se tivermos isto em conta, entenderemos como os seus desenhos podem constituir-se de modo tão estranho, com a representação incrivelmente minuciosa de seixos ou tecidos, em visão quase maníaca dos seus pormenores milimétricos. E como, nesta sua atenção ao que é infinitamente pequeno, as barreiras do espaço se dissolvem até mergulharmos numa dimensão já verdadeiramente cósmica.

“Sou um materialista integral” – dizia ao tentarmos esclarecer as nossas concepções o mundo. Palavras que exprimem a sua identificação com o Cosmos, o sentimento de uma unidade indissolúvel?

Recordo os seus últimos trabalhos, quando estava já confrontado com os golpes vibrantes que iriam vencê-lo. Infatigavelmente dir-se-ia, esculpe em pedacitos de madeira a representação de pequenas lagartas ou vermes (os tais bichinhos, nossa inevitável encarnação mais próxima?) que obsessivamente acumula em caixas. Não podemos deixar de estremecer perante estes trabalhos, tal é o nível de perturbação que denunciam – mas também de entendimento das verdades finais, banhado por um sentimento de irónica aceitação.
 

Francisco Bronze

Alma presente
Francisco Bronze

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