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As mãos, antes de mais. Pousadas sobre os braços da cadeira, momentaneamente surpreendidas na sua inquietante vulnerabilidade de batráquios domésticos. Logo enrolando-se sobre si, num movimento lento e concentrado (uma pausa na conversa) para, com um toque do mindinho, fazer cair a cinza do cigarro. Mãos pequenas e fortes, os dedos de unhas roídas eternamente impregnados de tinta e de tabaco, de restos de todos os tipos de matéria. Como se a precisão minuciosa do gesto assentasse numa espécie de mimetismo, de conivência carnal com a substância das coisas. Mãos que manejavam o serrote ou o machado com a mesma ciência exacta com que manobravam a goiva ou o pincel. Com o mesmo calor com que respondiam ao cumprimento inseguro dum amigo.


O olhar, pelo contrário, parecia fugidio. Só a pouco e pouco se percebia que as espessas lentes de míope protegiam, na verdade, receptores tácteis extraordinariamente sensíveis aos corpúsculos luminosos.


Esta simbiose, esta conivência táctil com a espessura e resistência luminosa da matéria, constituíam a essência da sua corporeidade. Uma corporeidade intrinsecamente sensorial, que, com o passar dos anos, acabei por confundir – decerto ilusoriamente – com a própria substância dalguns dos seus desenhos em que a distância representativa se esvai e a imperceptível dispersão do traço, no limite ambíguo da sua irrealidade, se transforma num objecto quase material. Num fragmento visível da pele do mundo. Desdobramento original duma extensão palpável em que sensualidade e sonsoriedade emergem continuamente.
No entanto, não havia nada de fluído ou de evanescente na sua presença. Muito pelo contrário: tinha um tronco largo e forte, de lutador de feira, e uma bonomia reservada, discretamente maliciosa, que parecia talhá-lo para o papel de estalajadeiro bon vivant. Mas raramente cultivava essas facetas, que, em sociedade, lhe poderiam granjear uma simpatia fácil. É certo que dispunha de uma força generosa e que não deixava de tirar algum gozo e alguma vaidade do exercício dessa virilidade franca, quase ingénua. Nas suas proezas físicas assumia o corpo sem precauções, com uma espécie de rudeza eriçada. Mas creio, que, no fundo, não se permitia atribuir-lhes uma importância excessiva. Quanto ao essencial, era pouco dado a condescendências. Habitava-o uma exigência de rigor, uma severidade quase ascética – que era talvez uma forma última de orgulho.


Esse rigor do espírito torturava-lhe a carne e implicava, sem dúvida, uma forma permanente de auto-sacríficio. Havia um anacoreta atormentado escondido no seu corpo maciço. Era secretamente espiritual como outros são secretamente libidinosos. Assim imagino, por vezes, nas frágeis bandeiras cravadas na sensualidade ondulante dalgumas das suas paisagens, uma alusão longínqua às insígnias da Paixão.


Não que desprezasse os efémeros arabescos do mundo. Na verdade, a sua afinidade corporal com a matéria reflectia-se, naturalmente, em conhecimentos diversos e minuciosos. Desde a técnica da poda à entomologia, tudo o que era concreto o interessava. Concreto e vivo: seria preciso dar aqui um lugar especial ao seu interesse pela biologia, pelas formas e metamorfoses da matéria viva. Mas era, evidentemente, antes de mais, no seu campo próprio que esta fascinação pelas mediações materiais se evidenciava. Revejo-o sentado no seu canto do sofá e explicando tranquilamente a técnica do fresco enquanto o fumo se lhe enrola no cabelo e nas mãos como uma vegetação aérea.


Noutras ocasiões – decerto – a conversa tomava rumos mais complexos. Mas, se não hesitava em acompanhar os amigos nos campos abstrusos da especulação, como nos meandros corriqueiros do quotidiano, mantinha sempre uma reserva ou um pudor fundamental quando se tratava de falar de si. Não me lembro de lhe ouvir um lamento ou um desabafo. Nem mesmo quando, nos anos conturbados da adolescência, lhe acontecia sair sem dinheiro sequer para o bilhete de eléctrico. Apesar de toda a sua calorosa afabilidade, era um homem secreto. Saberia que o essencial não pode (ou não deve?) ser dito… Mas havia também algo de mais violento e carnal nesse silêncio. Senão porque se preocuparia em açaimar algumas das suas criaturas mais inquietantes? Para proteger a inocência do mundo? Para se proteger a si próprio (como nesse auto-retrato com máscara antigás)?... Imagino, em todo o caso, que nessa forma de contenção íntima traduziria a necessidade de marcar algures um corte, de traçar, talvez, uma espécie de linha primordial.


Ilusão decorrente da proximidade ou, talvez, recusa em aceitar um luto prematuro, o certo é que não o consigo reconhecer em fotografia. Tenho mesmo por vezes a impressão que, criador de imagens, era, ele próprio, um homem sem imagem. Incapaz daquele mínimo de pose com que, convenientemente, nos oferecemos à objectiva nos retratos de família. Parecia recusar descer à vaidade do espelho. Dir-se-ia que alguma coisa aí lhe repugnava. Como se o corpo próprio, exibido, exposto ao olhar dos outros, não pudesse ser senão aberrante ou disforme, monstro de feira ou objecto de curiosidade médica.


E que poderei eu agora dizer, para além desta fragmentária invocação da sua ausência?... Há o lado anedótico, evidentemente. As noites de álcool e de filosofia da juventude. O corpo de Lisboa palmilhado de lés a lés. Os meses a sobreviver comendo papas de aveia em Paris. As margens boémias de um exílio quase monacal. Os objectos heteróclitos que sempre acumulou como um tesouro infantil.


E há também, é claro, outras aventuras mais sérias sobre as quais outros poderão dar melhor testemunho. Como essa longa carreira de ensino a que se dedicou generosamente, de corpo e alma, e em que encontrou decerto bem mais do que um ganha-pão.


Mas como falar do essencial, dessa relação íntima com a pintura que constituiu, desde sempre, o centro de gravidade, o nó obscuro da sua inquietação? Como dizer esse corpo-a-corpo apaixonado, a um tempo contido e secretamente violento…


Evocarei, como ponto de partida, uma imagem longínqua: a baía de Luanda. Uma forma, talvez, de marcar, algures, arbitrariamente, o lugar misterioso das origens… Na realidade, é apenas um episódio – mas aos 11 ou 12 anos há coisas que se decidem definitivamente. A baía de Luanda, portanto. O esplendor forte do azul. Logo a violência. Os corpos abandonados em poças de sangue seco. Coisas a que ele fazia de tempos a tempos púdicas alusões. Como se falasse de segredos de família.


Quando, depois disso, o reencontro e conheço verdadeiramente, nas longas peregrinações adolescentes pelas ruas e pelos cafés de Lisboa, o seu destino está traçado. Uma inocente chávena branca, pousada sobre o mármore negro, marca o centro do mundo. Fumo e palavras enrolam-se numa espiral sem fim. Mas ele já sabe que será pintor e essa certeza confere uma secreta consistência à sua disponibilidade tranquila, à atenção minuciosa com que observa as coisas e as pessoas rabiscando num guardanapo de papel. A vida pode esperar.
O momento das decisões irreversíveis, no entanto, virá apenas alguns anos mais tarde, em Paris. Um exílio feito de exaltação e de sombra, de pequenas humilhações e de tenacidade… é então que, no grande remoinho do mundo, se abre, de súbito, um espaço de silêncio. Num quarto vazio, o corpo do pintor está sentado numa cadeira. Decapitado. Confrontando-nos com a ausência ubíqua do seu olhar.


Voltará à pátria, de comboio, com um rolo de telas na mão e uma enorme prensa de gravura às costas como única bagagem.


A partir daqui, nos meandros duma longa amizade, nas incertezas do destino que, sucessivamente, nos aproximou e nos afastou, o melhor que sei dele confunde-se cada vez mais com a obra. Os nossos encontros e desencontros centraram-se de facto, e muito concretamente, nas imagens que produzia. Procurámos sempre aí o fio e a substância dum diálogo talvez impossível.


Terreno difícil. A obra está aí, inacabada e definitiva, confrontada com o destino incerto de todas as obras. Que posso eu acrescentar que não seja crítica ingénua, talvez mesmo traição? É verdade que costumava ser tolerante. Sorriria mais uma vez com uma ponta de ironia, corrigiria as imprecisões factuais da minha memória… e deixar-me-ia, como sempre, a responsabilidade das minhas fantasias.


Essas silhuetas curvadas, por exemplo. Gente na praia. Vultos dissolvidos na luz, docemente sensuais. Quase uma cena de família… Mas são as couves que triunfam. Couves esplendorosas, com a sua textura verde e rija. A nossa existência vegetal, obstinadamente erecta e utilitária, indiferente ao horizonte luminoso do mar. Ele próprio também, abdicando do exercício dos seus seguros dotes de velejador. Enraizado. Absorvendo com volúpia o ar espesso dos subúrbios industriais.


A couve, vegetal estóico e severo, sem seduções nem condescendências moles, orgulhosamente vertical, seria assim o reverso positivo do seu ascetismo. No entanto, a forma como nos interpela nos seus quadros é mais perturbadora e ambígua. Como nessa cidade nocturna em que paira o silêncio oprimente dos pesadelos. Que miseráveis mistérios esconderá a tela, o pano apressadamente estendido diante da janela? As ruas estão vazias mas a hipócrita duplicidade dos passantes inquieta-nos. Será verdadeiramente a couve, a majestade da couve, que motiva aquela encenação improvisada? Não será antes para nós que se dirige aquele olhar falsamente inocente?


Jogo de espelhos em que o pintor nos devolve os nossos próprios fantasmas. Enigma policial em que o investigador descobre ser o assassino… Mas o estilo é tranquilo. Estamos entre gente civilizada. Quando nos vemos forçados a matar, recobrimos previamente as nossas vítimas com um pano branco de silêncio. O artista pode, portanto, continuar o seu espectáculo. No fim de contas, é ele o monstro assolado que ocupa o centro das atenções. E a tela é agora apenas um inocente cenário de feira. Um pequeno frisson pelo preço de um bilhete...

Há o resto, evidentemente. A família, o veneno e o mel, as peripécias do acaso, o “miserável amontoado de pequenos segredos” que nos constitui a todos. Mas, feito o balanço (já que o destino assim o quis), que importa tudo isso? Inútil e irrisório como os pequenos trapos exangues que pendurava por vezes ao canto das suas telas. Troféus ou relíquias da carne.

Ele sabia-o, aliás. E não é sem ironia que nos oferece, de permeio com os fragmentos e os pauzinhos secos que povoam os seus desenhos, os próprios dedos decepados. O abc da morte.

Inútil.

Ocultação e exibição, véu e cenário, o pano estende-se sobre a tela. Recobrindo a face martirizada do ecce homo. Circunscrevendo o palco do nosso teatro de horrores. Escondendo o vazio silencioso da noite. E então, assustada, uma criança emerge do azul sumptuoso do mundo. Nós próprios.

O artista retirou-se de bicicleta sem dizer a última palavra.

 

Bruno Gonçalves

Retrato do Artista
Bruno Gonçalves

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